Quais as motivações que levaram jovens portugueses a ingressar na PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), como viveram o 25 de abril e como reorganizaram as suas vidas no Portugal Democrático?
São estas as questões que me levaram à conversa com JPP, um ex-PIDE, hoje com 66 anos, nascido na Golegã. Tirou o Curso Técnico Comercial (antigo 7º ano dos liceus) e tem como hobby a construção de miniaturas de barcos. É casado, pai de uma filha e avô de três netos.
Quero agradecer-lhe ter-me dado a oportunidade de o entrevistar para o Jornal da Academia e pedir-lhe autorização para gravar esta entrevista.
JPP: Eu é que lhe agradeço achar que a minha história serve para alguma coisa e não tenho problemas em que a grave, mas eu não gosto de ouvir a minha voz gravada, tenho más memórias disso, embora já tenha superado.
Como foi a sua infância?
JPP: Nasci na vila da Golegã, nas margens do rio Sorraia. Adoro a minha terra. Os meus pais eram trabalhadores rurais. Quando eu nasci, o meu pai trabalhava para uma família muito importante. Eram muito boa gente, mesmo que não conhecessem as condições miseráveis de vida da maioria dos seus trabalhadores (sorri). Andei na escola primária e era muito bom aluno, melhor que o menino, filho dos meus patrões, mas quando era para as reguadas todos apanhávamos, menos ele. (ri)
E isso não o incomodava?
JPP: Acho que achava que isso era natural (sorri) e nunca me incomodou, porque eu até era dos poucos que ia depois com o menino para a casa grande. E os senhores gostavam muito de mim. Aliás, se eu fui alguma coisa devo-o a eles, porque quando acabei a 4ª classe o meu pai queria que eu fosse trabalhar para o campo, mas a senhora, a patroa, convenceu-o a deixar-me ir estudar e ajudou os meus pais financeiramente.
Então continuou os seus estudos?
JPP: O meu pai tinha uns primos em Santarém e eu fui viver para casa deles. Foi um período muito difícil, viver longe de todos, com muitas dificuldades. Mas os resultados escolares na Ginestal Machado foram bons e fiz o curso comercial. A ideia era voltar para a Golegã e trabalhar nos escritórios da Casa Agrícola do patrão do meu pai.
Como ingressou na PIDE?
JPP: Acabei sem nunca chumbar o curso de empregado comercial, em 1968, mas a Guerra Colonial tinha começado em 1961 e morria de medo de pensar que tinha de ir servir para África. Em 1971, estava a concluir o Curso de Sargentos nas Caldas da Rainha, quando abriu, entretanto, um alistamento para a GNR, concorri e fui admitido em Lisboa. Entretanto, já na GNR soube de uma possibilidade de ingressar na PIDE-DGS e nem hesitei. Claro que não era fácil, eram muitos candidatos, se bem que na altura eu nem tivesse ideia disso. Na altura, o vencimento de um funcionário da PIDE era quase o dobro dos militares da GNR e quando fui admitido até chorei de alegria. É que tinha conhecido a minha mulher, ela é de Lamego e, claro, com 23 anos queremos é constituir família. Naquela altura, claro, hoje não é assim e ainda bem, os jovens querem viver a vida (sorri). Mas, apesar dos estudos, eu não tinha grande ideia política de nada. A verdade é que fui ensinado a nunca fazer muitas perguntas e acho que isso ajuda a sobreviver. A minha mãe dizia sempre que eu era muito aplicado nos estudos, mas deixava sempre fugir os porcos, quando nas férias ia para casa ajudar a família (ri). Sou assim um bocado distraído com as coisas práticas da vida.
Quando entrou para a PIDE?
JPP: Entrei para a PIDE, na altura DGS, em abril de 1973 e apresentei-me na Rua António Maria Cardoso, ali ao pé do teatro de São Luís, em Lisboa. Fui admitido para trabalhar nos arquivos. Fiz um curso, um tipo de estágio de preparação e, pronto, tinha o meu futuro garantido.
Mas não era difícil entrar para a PIDE?
JPP: Claro que era, mas a esposa do patrão do meu pai, que sempre me ajudou, porque gostava muito de mim, tinha um irmão que era General. Eram pessoas muito importantes e muito bem relacionadas. Falou com o irmão e, pronto, eu era bem comportado, tinha dado provas de confiança e entrei.
Como foi trabalhar nos arquivos da PIDE?
JPP: O período que lá trabalhei não chegou a um ano e, nesse ano, mentiria se não dissesse que vi e li muitas coisas que me pareciam estranhas.
De que tipo de coisas está a falar?
JPP: De repente, eu tinha à minha disposição a vida de milhares de portugueses, com todas as informações mais incríveis e detalhadas. Durante um tempo, achei que era natural ter lá o registo dos comunistas, do Sr. Álvaro Cunhal, afinal eles queriam a destruição do país. Mas ele havia de tudo: professores, padres e freiras, jovens estudantes, donas de casa… Comecei a ter medo, mas nunca partilhei isso com ninguém. Havia qualquer coisa que me dizia que aquilo era demais. E depois havia fotografias...de tudo, do antes e do depois!
Do antes e do depois?
JPP (pensa no que havia de dizer): Muitos destes arquivos eram, digamos, de gente anónima, mas havia de gente famosa, dos VIP's da altura. E era assustador, mas nunca o demonstrei, ver as fotos antes e depois de algumas destas pessoas serem “entrevistadas” lá nas salas da AMC. Hoje penso que, naquela altura, me convencia a mim próprio que se esta gente era detida para interrogatório, era porque alguma coisa tinha feito… A sério, fiquei feliz, aliviado mesmo, quando me propuseram mudar para o serviço de Controlo de Fronteiras, porque comecei a achar que era um bocado demais...É que às tantas a curiosidade mata-nos e quando vi arquivos de pessoas que eu conhecia pessoalmente, aquilo começou a mexer comigo!
Como foi viver o 25 de Abril?
JPP: Na altura do 25 de Abril, um mês antes, eu estava a preparar-me para mudar de serviço. Andava muito envolvido nessa mudança. Naquele dia, de repente, ficámos encurralados no serviço. A confusão era total. Eu não queria sequer acreditar que estava tudo a colapsar. Por momentos, lembro-me de tranquilizar os meus colegas, mas quando fomos detidos, pelos militares e levados para Caxias, achei que era o fim. Sobretudo, quando fomos acompanhados com as G3 apontadas aos nossos peitos e vi na rua colegas meus a serem enxovalhados, achei mesmo que estava por um triz a minha vida. (olhar suspenso) Chorei, chorei muito… Na verdade, não sabíamos o que se ia passar e passámos um dia com grande ansiedade, com nervosismo, com fome, sujeitos àquilo que viesse acontecer...foi um dia de bastante confusão e ainda hoje guardo com grande mágoa o que se desenrolou nesse dia.
Mas, nesse período, nunca pensou que isso poderia acontecer?
JPP: O quê, o 25 de abril? Sabia-se, sentia-se muita ansiedade e, sobretudo, havia muita informação a ser solicitada aos arquivos. Raro era o dia que eu não fazia doze horas de trabalho. Havia uma azáfama, uma espécie de descontrolo, mas nós nunca falávamos disso. Cada um fazia o que tinha de fazer e pronto. Eu era pago para isso e tinha de ser bom no que fazia!
Mas é capaz de dizer quais os aspetos positivos e negativos do seu trabalho na PIDE?
JPP: Quanto a mim, não havia negativo nem positivo, o interesse que eu tinha era simplesmente chegar ao fim do mês, receber o meu vencimento e fazer uma vida normal como qualquer cidadão. Por conseguinte, não há aqui nem positivos e negativos, era um funcionário e um cidadão como qualquer outro.
O que lhe aconteceu depois da revolução do 25 de Abril?
JPP: Fiquei preso em Caxias. Foi muito dificil. Fomos metidos praticamente como um “rebanho sem pastor”, em Caxias, onde permaneci, eu e os outros, sem culpa formada, ou seja, sem qualquer julgamento, nem ouvidos por qualquer autoridade, desde o dia 26 de Abril até ao dia 19 de Agosto de 1975. Depois o que aconteceu foi a fuga. Eu andava com grandes problemas de saúde e nesse dia fui a uma consulta ao hospital da Marinha, ao pé da Feira da Ladra, acompanhado por mais dois presos, um que não pertencia à polícia, que era filho do subdiretor e estava preso porque o pai, na altura do 25 de Abril, se encontrava em Espanha num congresso… como o pai estava ausente, prenderam o filho. Esse rapaz enquanto esteve detido procurou a sua libertação, não com meios violentos, mas com a ajuda de cúmplices do exterior. Ora, nessa dita consulta, apercebi-me do nervosismo dele e quando estávamos a aguardar que nos chamassem, ficámos completamente sós, sem qualquer guarda junto de nós... ele fez-me sinal e eu sem perceber bem como, enquanto ele fugiu por um lado, eu fugi pelo outro. Nunca mais o vi ou encontrei. Corri a Santa Apolónia, sem um escudo no bolso e apanhei o primeiro comboio que partia. Saí em Santarém e procurei ajuda de amigos. Depois, ainda pensei em ficar em Portugal escondido, mas isso era muito doloroso! Organizei, com ajuda de familiares e amigos dos patrões dos meus pais, a fuga para o Brasil, onde trabalhei durante 6 anos, tendo-se juntado a mim, mais tarde, a minha mulher.
Hoje, à distância dos 42 anos do 25 de Abril, que memórias e sentimentos guarda desses momentos?
JPP: Tenho pensado muitas vezes que teria sido melhor suportar as dificuldades que se passavam na GNR e, mais tarde, uma vez que era Sargento e tinha o 7º ano dos liceus, pudesse ter uma vida algo diferente do que tinha na altura. Como era Sargento, seguindo a carreira militar, com umas promoções, eu teria chegado longe, uma vez que tinha estudos e capacidade para progredir na carreira… Ter permanecido na GNR, afinal de contas não teria sido tão mau, nem sujeito a vexames… Infelizmente, foi uma vida muito difícil tanto para mim, como para a minha família. Mas passou-se… viveu-se, isso é certo (sorri emocionado).
Se pudesse resumir a sua vida numa só palavra, qual seria?
JPP: Uma palavra? Uma vida realmente vivida! Com períodos de grande sofrimento, de dificuldade e de incerteza, mas com muita esperança.
Porquê?
JPP: Foi um período muito desestabilizador na minha vida - tinha uma pequena viatura que foi vendida, tinha mobílias que fui obrigado a vender para pagar a fuga... Foi um tormento, foi uma grande dificuldade que realmente se passou na minha vida, o facto de ter pertencido a uma organização para a qual eu não estava preparado e da qual só “colhi frutos amargos”. Em contrapartida, não deixei de acreditar que, apesar de tudo o que se disse dos "pides", eu não era, nem fui um criminoso. Fui tão criminoso quanto todos os funcionários públicos deste país. Como os juízes, por exemplo, que faziam cumprir as penas aos opositores ao regime salazarista. E alguém lhes tocou? Ninguém! É que eu nunca torturei ninguém...nem nunca mandei ninguém ser torturado ou preso…
Que sonhos é que tinha e que não pôde concretizar pelo facto de ter pertencido à PIDE?
JPP: Tantos. Mas, se quer saber, já perdoei o mal que me fizeram ou o mal que me fiz. Nem sei ao certo. Não guardo rancores. Carrego as marcas das minhas decisões, mas sei hoje, que outros sofreram muito mais do que eu… Já o sabia na altura, mas não queria acreditar nisso. E o meu sonho concretizei-o. Tenho um lar feliz, com paz, com a felicidade às vezes possível e apesar das dificuldades, medos, terror que vivi no períoda da fuga, aprendi muito e hoje estou tranquilo. Melhor, estou em paz. O tempo cura tudo, não é o que se diz? Sem ressentimentos, nem vinganças! Aceito o que me calhou e desde que voltei, em 82, tenho procurado o mais possível contribuir para o crescimento deste país e não escondo nada do meu passado. Sem passado, perdemo-nos.
Tem algum sonho para o mundo?
JPP: O sonho que atualmente tenho para o mundo é que este fosse um mundo de paz, de amor e de fraternidade, que houvesse comunhão entre todos os povos e que assim pudéssemos viver tranquilos e que houvesse menos desigualdade entre pobres e ricos. É esse mundo que eu desejo para a minha filha e para os meus netos, que eu adoro. Só assim poderemos todos ser muito mais felizes...Mas são utopias, não é?
Gostou de participar nesta entrevista?
JPP: Sim, não tinha quaisquer reservas, nem tenho nada a esconder daquilo que fui ou que, por força de circunstâncias, me levaram a pertencer a tal corporação e, por conseguinte, estou satisfeito, não tenho quaisquer partes negativas nesse aspeto. Não sei se aprenderão alguma coisa ou se lhe vai servir, mas a mim deu-me muito prazer estar aqui com um jovem tão interessado. Fico mais confiante no futuro. Obrigado.
Eu é que lhe agradeço. Muito obrigado por partilhar a sua experiência connosco.
Por José Machado
0 comentários:
Enviar um comentário
Obrigado pelo seu comentário!